terça-feira, 31 de agosto de 2010

Baú da memória, cada um tem sua história

Quero partilhar com você o meu trabalho na Educação infantil nessa nossa busca pelos achadouros de infância.Esse foi um projeto que buscava ampliar o contato das crianças com a idéia de que todos temos uma história.

PROJETO Baú da memória, cada um tem sua história.
Agrupamento: EI-F Faixa Etária: 5 a 6 anos de idade
Educadoras:Mônica Melo de Rezende e Severina Maria da Silva

Projeto: Baú de memória, cada um tem sua história.


Justificativa: Buscar na memória afetiva do grupo e de seus familiares através de suas histórias de vida a relação entre memória e história e o reforço nas crianças de atitudes e valores como respeito as diferenças, amizade, compreensão. Com isso gostaríamos de favorecer o diálogo entre as diferentes gerações (avós, pais, netos, filhos, tios, etc.) e dar visibilidade aos diferentes tipos de família possíveis. Sendo assim através de vivências humanizadoras, esperamos agregar a vida de nossas crianças, a troca de experiência com pessoas mais velhas como algo enriquecedor de suas humanidades.

Intencionalidade:
Explorar a literatura infantil bem como o gosto pela mesma. Trabalhar situações mais afetivas, viabilizando valores como amizade, compreensão, respeito, solidariedade, diálogo.

Intercambiar trocas de informações entre diferentes gerações resgatando a memória das famílias.

Explorar o conceito de memória como elemento constitutivo das histórias de vida individuais e da história coletiva do grupo.
Observar objetos de diferentes épocas.

Ações significativas e relatos de experiências

Leitura de Histórias: Guilherme Augusto Araújo Fernandes e a Colcha de retalhos.

Leitura de poemas: Bizazinha de Pedro Bandeira

A partir do livro “A colcha de retalhos” trabalhar com a memória afetiva das crianças e confeccionar uma colcha de memórias de retalhos de papel com desenho.
Com base no Livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes e da exploração da compreensão leitora das crianças, criar a dinâmica baú da memória onde cada criança traz numa caixa de sapato objetos de seu primeiro ano de vida. Partilha com o grupo de memórias de família suscitadas pelos objetos. Fazer colagens sobre a caixa (decoupage).

Trazer fotos, objetos e músicas para contextualizar uma época desconhecida pelas crianças. Usando um rádio antigo, músicas do Elvis Presley e fotos dos anos 50 na revista Nossa História, Anos JK.
Entrevistar uma avó ou bisavó de uma das crianças, intercambiar o diálogo entre diferentes gerações, colher informações de caráter coletivo no relato pessoal dela, viabilalizar aprendizagens a partir desta vivência. Montar ambiente de acolhida para a entrevistada para propiciar seu relato e uma melhor interação com as crianças ( chá com bolo e flores).

Segue abaixo o relato de experiência com base nas ações significativas:

Meu nome é Mônica Melo de Rezende. Sou professora da Rede Municipal de Ensino de Goiânia desde 1992. Especialista em Educação Infantil e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente sou professora regente do agrupamento EI-F de crianças de cinco anos de idade do Centro Municipal de Educação Infantil “Dra. Elizabeth Pinto Ribeiro”, junto com a agente educativa Severina.
Costumamos comparar a personalidade da nossa turma a de um “formigueiro” agitado e intenso. É um grupo muito participativo, mas com dificuldades de escuta e percepção de limites. São crianças que exigem muita inventividade e alternância na proposição das atividades já que ficam tempo integral no CMEI e já se encontram há muito tempo na instituição, muitos deles desde o berçário. Como os eixos de nossa proposta política-pedagógica são o cuidar, educar e brincar, não há um foco na alfabetização, contudo o trabalho envolve o desenvolvimento da criança por meio do contato e da exploração das mais diversas linguagens (música, teatro, artes plásticas e outras).
Dada essa necessidade de ampliar a escuta e a percepção das crianças de sua pertença a um coletivo e de trabalhar a relação criança-criança e criança família, comecei a buscar as bases para o desenvolvimento de um projeto que se voltasse a historicidade das crianças e de suas famílias e que contribuíssem para a melhoria das relações interpessoais no grupo através da valorização de suas histórias de vida. O eixo de nosso projeto foi o trabalho com a memória, categoria que explorei em minha dissertação de mestrado e a qual eu acalentava o desejo de explorar com crianças. A memória no relato oral foi eleita por mim como fonte de informações para coletar a história familiar, por isso também se fez necessário construir um conceito de memória com as crianças. Mas como trabalhar o conceito de memória com crianças tão pequenas? O caminho escolhido para essa construção foi a proposição de algumas vivências que visavam desenvolver a capacidade de observação, discussão e registro de mudanças e permanências, de semelhanças e diferenças, relacionadas ao próprio tempo histórico das crianças. Assim nasceu o projeto “Baú da memória: cada um tem sua história”.

Nesse projeto baseamos na afetividade e na memória das crianças do agrupamento e de suas famílias o reforço de atitudes e valores como amizade, compreensão, respeito, escuta do outro. Com isso, tentamos ressaltar a importância do diálogo entre as diferentes gerações nas famílias. Esse resgate dessa memória afetiva no projeto buscou através da metodologia de história de vida a construção também de um conceito de memória através da exploração das histórias: “Colcha de Retalhos”, de Nye Ribeiro Silva e Conceil Corrêa da Silva (Editora do Brasil); “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”, de Mem Fox (Editora Brinque-Book; de objetos pessoais das crianças em seu primeiro ano de vida e de objetos e músicas da Década de 50; e da entrevista da bisavó, dona Giselda, de uma das crianças, o Wesley.



Para enriquecer o momento da leitura da história “A Colcha de Retalhos” contamos com a preciosa ajuda da Maria Eduarda, que levou a colcha de retalhos que sua Avó lhe presenteou em uma de nossas vivências, a vida imitando a arte ou será a arte imitando a vida. Ela, a Ana Clara, a Sara e a Sthefany foram para fora da sala com a colcha, e eu motivava as crianças dizendo que a história que iríamos ler tinha um nome do objeto que as meninas traziam nas mãos. Escondidas atrás da colcha, as meninas entraram na sala. Enquanto isso, as crianças arriscavam-se: É um lençol? É um cobertor? Até que falaram é uma colcha. Perguntei de que era feita e alguns disseram de pedaços de pano. Maria Eduarda, mais que depressa, respondeu: É de retalho gente! No roda iniciei a leitura da história que fala da relação de uma avó e de um neto e que gira em torno de uma colcha de retalho. O tema da saudade e da memória abordado na história foi explorado a partir também dos relatos das crianças sobre as coisas que lhes davam saudade. Esse trabalho com a memória afetiva das crianças trouxe um momento bastante pungente como a fala do Luiz Fernando: Eu sinto saudade do vovô Antônio que ta lá no céu, eu não conheci. Na verdade a memória de seus pais partilhada com ele foi contemplada, o que comprova o que Maurice Halwbachs fala ao dizer que parte das nossas memórias nos são repassadas nos grupos de pertença, por nossos pais, avós etc. Cada criança foi relatando a saudade que tinha e, assim, demonstraram sentir falta de pessoas e não de coisas (relatório diário - 5\5\2009) para mim isso parece bastante positivo. Num mundo de consumo e onde o essencial tem tão pouco valor, as crianças carregam valores mais humanizadores. A partir daí, cada criança fez um registro com desenho e nós montamos uma colcha de retalhos, caleidoscópio de nossas memórias.



A partir da história “Guilherme Augusto Araújo Fernandes” trabalhamos o conceito de memória e sua relação com os sentidos, fomos depois da leitura colhendo as hipóteses sobre o que é a memória tentando buscar a compreensão desse conceito junto às crianças. A maior parte das crianças associou a memória ao jogo da memória, mas a Maria Eduarda e o Diego associaram, respectivamente, a aquilo que se lembra e à cabeça. Na história, Guilherme é um menino que ajuda sua vizinha Dona Antônia, moradora de um asilo vizinho à sua casa, a recuperar a memória. Para realizar seu objetivo, primeiro Guilherme tem que compreender o que é a memória. Essa compreensão eu e as crianças estávamos construindo na discussão da história. Os outros velhinhos, personagens da história, vão dando pistas sobre o que é a memória (algo quente, algo antigo, algo que vale ouro, algo que faz chorar, algo que faz rir). Nesse momento conduzi as crianças à percepção de que tudo que guardamos na memória nos vem pelos sentidos (visão, olfato, audição e paladar). Pois podemos lembrar de coisas pelo cheiro, através de uma música ou imagem etc.


Como na história, Guilherme ajudou Dona Antônia juntando objetos numa caixa, propus que as crianças trouxessem seus ‘baús de memória’, caixas com recordações guardadas por seus pais. Meu intento era de que, ao pedir tais objetos aos pais, as crianças conhecessem mais de suas histórias. Como as crianças não entenderam, a princípio, o que propus, no outro dia levei o meu ‘baú de memória’, um cesto de palha com objetos pessoais que marcaram minha história de vida (roupas, fotos, perfumes etc) sobre quatro mesinhas dispus uma toalha de mesa que foi presenteada a minha mãe quando eu tinha 7 anos e que, ao me casar, ela me deu. Partilhei com o agrupamento minhas recordações trazidas nos objetos. Com atenção e curiosidade os objetos eram recebidos pelas mãozinhas das crianças.

No outro dia praticamente todas as crianças haviam levado seus objetos pessoais (coisas de bebê) em caixas de sapato. Ansiosas por mostrar seus objetos pessoais, elas foram, uma a uma, mostrando suas preciosidades (relatório diário 20\5\2009). Levaram mantas, roupinhas de bebê, sapatinhos, fotos e até a primeira paganzinha o Luiz Fernando levou. A maioria falava das recomendações das mães para não sumir, ali haviam tesouros guardados por aqueles pais e era muita responsabilidade lidar com eles. Foi um momento único, um misto de orgulho e emoção, suas histórias ali em pequenos objetos. Registramos o momento com fotos e desenhos e o Gustavo Rodrigues me surpreendeu, pois conseguiu representar em seu desenho a disposição das quatro mesas cercadas de cadeiras, demonstrando um avanço na percepção de espaço.
Dando segmento ao projeto “Baú da Memória” (relatório 27\5\2009) levei para a sala de aula um rádio antigo da década de 50, ouvimos os sucessos de Elvis Presley e observamos as fotos de revistas. Nossa história – Os anos JK. As crianças, ao verem o rádio, tentaram adivinhar que estranho objeto era aquele. O Gustavo Henrique disse que era um som. Mas foi a Gabriela que identificou o rádio. Eu expliquei que aquele objeto tinha 50 anos. As crianças perguntaram se ele funcionava, eu disse que não, pois faltavam as pilhas. Quando coloquei perto do antigo rádio nosso aparelhinho de som, sugeri que as crianças identificassem as diferenças entre os mesmos. Uns observaram que o rádio era antigo, que era feito de madeira, que tinha botões, que era mais pesado. Já, quanto ao aparelho da sala, observaram que era preto, menor, que era de um plástico duro e que tinha lugar para tocar CD. Comentei com as crianças sobre as Copas do Mundo de Futebol, informando que naquele rádio o meu sogro ouviu a Copa de 1958. Ouvimos o CD do Elvis Presley, as crianças acharam engraçado a musicalidade dos anos 50. Em seguida eu passei de mão em mão a revista Nossa História – Anos JK. Perguntei se as crianças conheciam Brasília e que Brasília tinha exatamente 50 anos. A Maria Eduarda disse que sempre vai a Brasília pois tem tios lá. Nessa hora a Gabriela perguntou: Quantos anos tem Goiânia? Depois eu disse 75 anos. Após essa exploração, expliquei às crianças que os objetos são a memória das épocas e nos informam diferentes características de cada período. A música, o objeto e as fotos da revista foram o esforço de contextualizar alguns aspectos de um período, eles são as marcas de uma época.

Finalizamos o projeto “Baú da Memória” com a entrevista de Dona Giselsa, bisavó do Wesley. Decoramos o espaço próximo ao quadro com cortininhas brancas e forramos uma mesinha da sala com uma toalha de rechilieu branca e, sobre ela, colocamos uma chaleira com chá de capim cidreira, o delicioso bolo de milharina da Severina (agente educativa) e um vasinho de violetas, com o qual o Wesley presentearia a bisavó para agradecer-lhe a contribuição ao nosso projeto. Já eram 14h30 quando a bisa Giselda chegou, as crianças, ansiosas, já haviam até ensaiado uma saudação. Sentadas em semi-círculo com expressões alegres cumprimentaram Dona Giselda do seguinte modo – Seja bem-vinda ao agrupamento F. Eu fiz a primeira pergunta de nossa entrevista que foi sobre o nome dela. Em seguida o Luís Fernando e o Guilherme saudaram de novo Dona Giselda. A Sara perguntou quantos anos ela tinha. Ela disse que 59 anos. A Sthefany perguntou, em seguida, quantos anos ela vai fazer. O Guilherme rapidamente respondeu: 60, Sthefany. Em seguida, a Gabriela perguntou onde ela morava. Dona Giselda respondeu que na Rua Igarapé, no Parque Amazônia. Nessa hora perguntei-lhe a quanto tempo ela vivia nesse endereço. Ela disse que há 20 anos, mas que já morou em outros bairros, como o Setor Pedro Ludovico, por exemplo. Para que as crianças pudessem perceber que os lugares se modificam, perguntei se o Parque Amazônia foi sempre do mesmo jeito. Nessa hora ela nos disse que não, que no começo havia muito mato, poucas casas e muitos ‘trieiros’ e que para ir para outros lugares, eles tinham que andar até o Setor Nova Suíça a pé para poder pegar um ônibus. Perguntei a Dona Giselda se ela era goiana. Ela me respondeu que não, que veio da Bahia com 5 anos de idade montada num jegue, acompanhando seus pais. Essa jornada durou dois meses. Disse que passou muita fome. Que não se lembra de ter brincado. Que perdeu a mãe aos 6 anos de idade. Sofreu maus-tratos de sua madrasta e que, aos nove anos, chegou descalça a uma casa de família de Goiânia para trabalhar como doméstica, mas que já trabalhou no interior próximo de Ceres antes disso. A cada relato seus olhos marejavam, tentei pontuar sobre as condições de vida de muitas crianças, tão diferentes das vividas pelas crianças no CMEI. Tudo era muito intenso e triste, eu não esperava um relato tão forte, não sei de que modo as crianças absorveram a história sofrida de Dona Giselda. As crianças a beijaram e agradeceram a sua vinda e depois partilharam com ela o lanche.

Avaliação
É difícil dimensionar o que vivemos e o alcance das aprendizagens construídas nesse processo de realização do projeto, mas considero que contribuiu para melhorar a escuta do outro pelas minhas crianças, seja esse outro um colega, um pai, um educador ou um idoso. Construímos juntos um conceito de memória e percebemos a historicidade de que somos todos portadores. Mas foi no relato de Dona Giselda que fizemos nossa maior aprendizagem e que é tão bem colocada por Ecléia Bosi: (...) O modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador ao trabalhá-las vai, paulatinamente, individualizando a memória comunitária.
Ah! É possível, sim, falar de memórias com crianças tão pequenas!

Bibliografia
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembrança de velhos. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1994.
FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. Editora Brinque-Book, 1995.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo. Editora Centauro, 2004.
SILVA, Conceil Correia & SILVA, Nye Ribeiro. A Colcha de Retalhos. Editora do Brasil, 1995.
TODARO, Mônica de Ávila. Vovô vai à escola. A velhice como tema transversal no ensino fundamental. Editora Papirus, 2009.

Ah! É possível, sim, falar de memórias com crianças tão pequenas!E você o que acha?

3 comentários:

  1. Parabéns pelo projeto. Amei o tema e o desenvolvimento do projeto.

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  2. Parabéns amei também, já tinha visto através de outra professora e o seu só veio somar. Lindo!

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